- Tingo!
- Tingo não. É bingo!
- Não, não; é tingo mesmo. Eu tava pensando no Zé. Precisou o safardana morrer pra eu encontrar uma palavra que se ajustasse àquele...
- Desajustado.
- Justo. O sacripanta azucrinava meio mundo e...
- Seus talões é que tão desajustados. Desse jeito você não faz bingo.
- Que bingo o cassete. Falei tingo.
- Cê tá ficando gagá. Que catzo é esse de tingo?
- É uma palavra que aprendi outro dia é em rapanui, o idioma da Ilha de Páscoa.
- E onde é que o Zé entra nessa?
- Aí é que tá o busílis. Significa literalmente pegar muitas coisas emprestadas da casa de um amigo até que não sobre nada.
- Mas é uma pintura. E criaram o termo só pra designar o Zé?
- Parece, não é mesmo?
- Vem cá. Onde é que você desencava tanta cultura inútil?
- É que eu já tô de saco cheio de jogar bingo todo dia; daí, depois que o Zé morreu achei que escrever sua biografia seria um bom derivativo pro tédio.
- Incrível!
- Cê tá admirado?
- Nécaras! É incrível mesmo. Em todos os aspectos: Você escrever; você se preocupar com o Zé... É comovente. Dá licença... To quase ficando interessado. Em que parte cê ta?
- Já escreveu tudo? Todas as presepadas?
- Claro! Que não. Comecei pelo fim.
- É o fim da picada. Mas afinal até que enfim algo crível. Tua cara.
- Bão... Começa assim:
- Termina. Cê qué dizê...
- Calaboca! Vai escutar ou não?
“Zé moribundo. Uma enmerfreira gost...
- Enmerfreira? Que porra é essa?
- Neologismo. Síntese de freira com enfermeira. Mas se ficar interrompendo não vou ler merda nenhuma...
“... uma enmerfreira gostosinha se aproxima de seu leito de morte e lhe sussurra na orêia com uma voz quase o ressuscita:
- Posso ler algo para consolá-lo, irmão?
- Acho mais fácil – responde contendo o riso – eu consolar você, irmã.
- Como assim?
- Nada, nada, irmã; Leia pra mim o salmo 23.
Zé a escuta impassível até o momento em que ela (irmã Inocência) chega no trecho que diz: ... a minha vara e o meu cajado te consolarão...”
Aí Zé não agüenta mais e com um ultimo “não te disse?” rebenta num estertor de gargalhadas que o faz expirar com uma hedionda máscara sardônica de lascívia.
Tal semblante não a deixa nada indiferente e, inconscientemente, com a maõ entre as coxas, irmã Inocência ora com sofreguidão pela alma safada do Zé sátiro.
Falá nele, lá vai o degas, todo pimpão pela estrada da escuridão, vez em quando soltando umas graçolas na orêia de Dona Morte.
De repente a estrada clareia, Dona Morte escafedeia e o Zé fica com um pé atrás. “Caralho! Isso aqui ta ficando muito fresco!” Ao dobrar uma esquina, um terror de morte lhe gela o sangue nas veias. No fim da alameda um imenso letreiro azul e vermelho sobre fundo branco:
“Paradise Inn. The Best Resort of U.S.A. in Heaven. Welcome!”
- Fudeu! – pensa – Isso vai ser o inferno.
- Pó pará. Nunca ouvi tanta baboseira duma vez só.
- Bingo!
- Bingo não. Tingo.
- É bingo mesmo. Bati!
Autor: Marquinhos